Na frente das câmeras, o holofote iluminava Marcos Palmeira sozinho no palco. Atrás delas, Zelito Viana assistia atento da primeira fila da plateia como todo bom e astuto diretor de cinema. “Ação!” e, em poucos minutos, o grupo de técnicos, assistentes e diretores já moviam o cenário para a próxima passagem. O show precisa continuar e, da plateia, o AdoroCinema pôde acompanhar, ao vivo e a cores, esse trabalho coletivo e, nesse caso, especialmente familiar do cinema.
Fomos convidados para passar um dia no set de Sedução, conversar com o elenco composto por Camila Morgado, Dira Paes, Jean Pierre Noher, entre outros astros e ainda participar de uma das cenas do filme. Ao longo de uma tarde, vimos os esforços de pai, filho e todo um time de profissionais amigos para dar vida a um projeto inédito e amplamente metalinguístico que nasceu de uma história íntima. Sedução é o primeiro longa de ficção de Zelito em 16 anos e, tornando ainda mais especial, é co-dirigido pelo filho Marcos Palmeira, sua estreia na função.

“Acredito que é uma história que estava guardada com ele. Têm 20 anos que ele escreveu o primeiro roteiro, é muito tempo. Parte de uma história pessoal, mas ele vai abrindo outros caminhos”, comentou Palmeira sobre a faísca que gerou esse trabalho, uma experiência envolvendo seu pai e seu avô. “Não é um filme autobiográfico, é um filme inspirado numa situação que, na verdade, é a de quase todo nordestino e nortista, desta segunda família, deste cara que trouxe o filho para o Sul, largou aqui para estudar e voltou para lá”
Na trama, um renomado ator de novelas chamado Paulo Martins parece ter alcançado tudo o que queria: fama, popularidade e dinheiro. No auge da carreira, ele vive isolado neste mundo de glamour, bajulação e trabalho. Um dia, porém, ele recebe a notícia inesperada da morte do pai que não via há mais de 30 anos e que morava no Pará.
Mesmo contrariado, Paulo atravessa o país para resolver assuntos pendentes da família. A viagem, entretanto, acaba tomando outro rumo quando o ator entra em contato com as memórias, as pessoas e a vida do apelidado Coronel OLIVEIRA PAULA, seu pai. Nesse encontro com as origens paternas, o astro da TV acaba embarcando numa jornada de autoconhecimento e transformação em meio à imensidão e à riqueza de um Brasil profundo e distante de sua realidade.

Entre o que há de verdade e criação no longa, Zelito reitera: “90% é ficção. O episódio que, digamos assim, detona o filme é um caso que aconteceu comigo. É o motivo principal da existência do filme. É 10%, mas é importante. Conheci os oito irmãos ao mesmo tempo, de uma vez só”, declarou.
Para Marcos, esse convívio entre realidade e ficção não escapa à construção de seu personagem. “Acho que o Paulo, na verdade, acaba trazendo muita coisa da minha própria vida. Eu não me tornei esse ator que o Paulo se tornou, com essa personalidade tão complexa, mas, de alguma forma, essa relação com a Amazônia e com a floresta me resgatou e resgatou também um pouco do meu trabalho como ator”, destaca o astro que também ressalta a urgência que tratar de temas ambientais em seu trabalhos.
Estamos num momento político muito complicado. Fico me perguntando quem realmente está preocupado com o Brasil. Tá todo mundo preocupado com o seu próprio bolso, com o seu universo. A discussão nunca passa pelos problemas que nós temos. Acho que o cinema ajuda nesse sentido. Não acho que [o cinema] tenha que ser panfletário, não acho que seja uma obrigação. Mas acho que o Zelito traz isso um pouco na história dele no cinema, desses filmes meio denúncia, que ajudam a abrir arestas na nossa consciência.
Além do Rio de Janeiro, Sedução foi filmado em Alter do Chão, no Pará, às margens do Tapajós, buscando essa autenticidade e imersão da locação que se funde com os passos do protagonista. “Realmente o lugar é mágico. A sorte dele é que é longe. Se fosse perto, já tinha acabado, os paulistas já tinham tomado conta”, brincou Zelito que, mesmo aos 87 anos, ressaltou Marcos, “bancou a aventura” de gravar a quilômetros de distância, no interior do Brasil onde se constrói o universo do personagem. “Normalmente alguém fala ‘Ah, vamos fazer ali em Mangaratiba, vamos fazer tudo aqui, filmar na Floresta da Tijuca’. Mas não é a mesma coisa”
“É a primeira vez, na verdade, que eu faço um filme que tenha algo tão pessoal. Isso era um desafio e eu gosto de fazer o que eu nunca fiz”, destacou Zelito cuja carreira longeva e lendária remonta aos áureos tempos do Cinema Novo e a um trabalho de formação e experimentação do cinema brasileiro como arte política.
Sedução, inclusive, está sendo produzido pela Mapa Filmes, produtora carioca sexagenária fundada por Zelito por sugestão de Glauber Rocha e em parceira com Walter Lima Jr., Paulo César Saraceni e Raimundo Wanderley Reis. O nascimento da anteriormente nomeada Produções Cinematográficas Mapa Ltda se confunde não só com a entrada de Zelito no cinema – primeiro como produtor –, mas também com a história das mais emblemáticas e pioneiras produções audiovisuais nacionais.
Um olhar atento aos créditos de Terra em Transe (1966), de Glauber Rocha, A Grande Cidade (1966), de Cacá Diegues e Cabra marcado para morrer (1984), de Eduardo Coutinho e é possível avistar um padrão: o nome da Mapa Filmes do Brasil. E tudo começou graças a um convite de Leon Hirszman, então colega do curso de Engenharia de Zelito, para trabalhar como produtor e, logo, Menino de Engenho (1965), de Walter Lima Jr., sairia como o primeiro filme com o selo da produtora.
O resto é história, mas daquelas robustas e carregadas, como bem sugere Camila Morgado, que confessa ter aceitado fazer essa participação pelo valor afetivo do papel, pela amizade com Marcos e pela admiração a Zelito. “Acabo fazendo várias perguntas quando eu posso. Ele me conta fofocas dos bastidores com Glauber Rocha. Acho que eu estou aqui por causa disso, a verdade é essa”, brinca.

Camila faz o papel da esposa de Paulo, Sara Teixeira, uma atriz e produtora que fica na espera da volta do marido enquanto tenta reunir o necessário para colocar de pé uma peça de teatro que ambos sonham em realizar. “A gente pôde brincar um pouco dentro desse universo que já é nosso. Então, eu me sinto fazendo eu mesma, amiga do Marquinhos Palmeira. Estou aqui fazendo uma participação querida porque somos todos amigos, a gente se gosta e se diverte em cena”.
Sem o risco de entregar demais o fechamento da narrativa, Camila se esquiva de comentar muito sobre a cena que veríamos (e participaríamos) naquela tarde. Estarmos presentes num bonito e elegante teatro já indica o suficiente, assim como a presença dos atores Jean Pierre Noher, Begê Muniz e Mell Muzzillo no set.
Enquanto Noher encarna Álvaro, o agente de Paulo, Begê Muniz e Mell Muzzillo integram o núcleo paraense nas peles de Miguel, meio-irmão de Paulo e uma espécie de guia desse novo mundo para o recém-chegado, e de Sheila, esposa de Miguel e uma mulher indígena que também ajudará o astro nessa reconexão com suas origens.
Nessa última diária do trio e também de Camila Morgado é uma unanimidade o sentimento de gratidão e sensação de encerramento, “e te digo que o filme está melhor do que o roteiro”, acrescentou Zelito. Rapidamente pergunto o motivo. “O cinema é assim, vive do momento da criação. Agora mesmo, por exemplo, nós descobrimos que um colar que a Dira usou lá em Alter do Chão virou uma pintura indígena no olho do Marquinhos. São essas coincidências que acontecem no momento da filmagem que fazem o filme. Precisava chover quando estávamos filmando e caiu a chuva. A moça lá [em Alter] disse que a Amazônia não dá o que você quer ou procura, dá o que você precisa.”
Questionado, então, sobre o que ainda o atrai em fazer filmes depois de todos esses anos, Zelito é enfático: “É uma cachaça. É um vício”, ri. “Eu disse outro dia no jornal que um cara perguntou ‘O senhor vai se aposentar?’ e eu falei: ‘Eu não, nunca trabalhei’”. Já em relação às necessidades do cinema brasileiro contemporâneo, o cineasta não deixa de olhar o momento atual com otimismo e reverência.
“Acertamos agora dois tiros na mosca. Precisa de quantidade. A qualidade vem da quantidade. Você precisa fazer muito filme para poder acertar no filme do Walter Salles, no do Kleber Mendonça. Como sempre, a luta continua. É sem fim para que a gente tenha acesso ao nosso mercado. Não existe nenhuma cinematografia sem proteção, nem mesmo a americana. Vejo nesse momento muita possibilidade. Surgiu uma explosão de telas muito grande, no streaming, na TV a cabo, por assinatura e sobretudo pelo VOD. Isso é bom para o cinema. Agora, precisa lutar pela defesa do mercado, regulamentar, não pode deixar solto”
Sedução ainda não tem data de estreia e é uma co-produção com Globo Filmes, Canal Brasil e Telecine;